quinta-feira, 6 de julho de 2017

O Pelé do basquete

Ano passado, falamos aqui sobre a camisa 10 do basquete (relembre clicando aqui). Desta vez, falaremos sobre quem seria, no basquete, aquele que foi o maior camisa 10 --e qualquer número-- da história do futebol.

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         É comum, especialmente no Brasil, referir-se a algum profissional de talento especial ou com feitos grandiosos como “o Pelé” da área. Nas comparações entre esportes, isso é ainda mais visível. Nomes das mais diversas modalidades são eleitos e alçados à posição de “Pelé”: Michael Phelps, na natação; Usain Bolt, no atletismo; Roger Federer, no tênis. E no basquete convencionou-se um nome: Michael Jordan.        

        Entre todas as personalidades citadas, uma semelhança: o fato de serem ícones globais, as maiores referências dos respectivos desportos, e todos eles terem grande exposição midiática, não apenas por parte da imprensa dita especializada mas também da publicidade e do marketing.

        No entanto, a analogia de tais atletas com Pelé irá incorrer em um erro básico: todos eles pertencem a gerações posteriores à do “rei”. A rigor, não há nenhum problema, pois todas as épocas produzem gênios. Porém, as razões para tais escolhas divergem.

        Em se tratando de esportes individuais, os recordes obtidos são a métrica mais objetiva e rápida, embora também possa haver questionamentos relacionados à forma como tais números tenham sido galgados; já nas modalidades coletivas, a subjetividade vai pesar muito mais.       

        Pelé teve seu auge quase sem registro da televisão; nunca concorreu à Bola de Ouro; ganhou Libertadores e Taça Brasil em 3, 4 partidas; marcou boa parte de seus gols em jogos não-oficiais ou em ligas hoje consideradas menores; diversos de seus adversários não eram profissionais na acepção da palavra; a velocidade do jogo era sensivelmente menor; e não havia a intensidade física, tática ou disciplinar presentes no futebol atual.
        
        Por outro lado, há que se pensar na precariedade de gramados e materiais esportivos na época, na excessiva marcação sofrida por Pelé -- numa época em que ainda não havia cartão vermelho! --, e também no fato de que, num tempo onde o futebol ainda não era negócio, havia mais liberdade criativa e, consequentemente, mais espaço para o talento individual. Além disso, mesmo que em amistosos, enfrentou diversos clubes europeus em vários momentos.
        
        Basicamente, Pelé ascendeu à categoria de maior nome da história da modalidade por dois fatores: 1- estava muito à frente de seus contemporâneos em termos técnicos e no preparo físico, desenvolvendo habilidade em praticamente todos os fundamentos (ele chegou a defender um pênalti!); 2- conquistou números impressionantes, algumas de suas marcas sendo desvalorizadas ou mesmo desacreditadas na atualidade dado o absurdo (esqueça o “milésimo” e pense em 8 gols num mesmo jogo, 127 em um ano ou média de quase 1 por partida).
Pelé marcou 1,283 gols ao longo de sua carreira
         Tanto os prós quanto os contras citados com relação a Pelé não encontram paralelo em Michael Jordan.        

        É óbvio: seu currículo é monstruoso e fala por si só: campeão da NBA 6 vezes (e em todas elas escolhido o melhor jogador da Final) e 5 vezes eleito o craque da temporada, é dono de algumas marcas importantes, como o maior número de pontos em um jogo eliminatório ou mais partidas em sequência anotando pelo menos 10 pontos. Além disso, seu sucesso fora das quadras, seja como garoto propaganda, como empresário ou “embaixador do basquete”, é ímpar.

        Entretanto, diferentemente do que acontece no futebol, o fato de muitas mudanças mercadológicas, técnicas, tecnológicas, táticas e físicas terem ocorrido no esporte não pesa contra ele: pelo contrário, questionados são aqueles que o antecederam.        

        Larry Bird, quando perguntado sobre o maior jogador da história do Basquete, foi sucinto: "Deixa eu te falar uma coisa: durante um tempo, eles diziam que eu era o maior de todos. Antes de mim, era Magic [Johnson] o maior. E agora é a vez de Michael [Jordan]. Mas abra o livro de recordes do Basquete e vai ficar óbvio quem é o maior".

Michael Jordan e Wilt Chamberlain dividem o recorde de 30,1 pontos por jogo

        Poucos anos antes de Jordan nascer, Wilton Norman Chamberlain fazia sua estreia na NBA.

        “Wilt”, como era conhecido, foi autor dos feitos mais inacreditáveis da história do basquete: muito mais do que marcar 100 pontos em um só jogo -- e isso não é uma hipérbole --, ele registrou marcas absurdas não apenas no ataque, mas também na defesa, na armação e na eficiência.

        Jogando por três equipes diferentes, pode-se dizer, também, que ele foi três jogadores diferentes. E cada um deles está entre os melhores de todos os tempos.

        O Chamberlain do Golden State Warriors foi o mais dominante pontuador que o Basquete viu ou verá: na temporada 1961-62, ele disputou 80 partidas e teve como PIOR desempenho 26 pontos. Sua média naquele campeonato foi de 50,4 pontos por jogo, algo que parece uma loucura sob qualquer aspecto que se analise. Apenas como comparativo, a melhor temporada de Jordan em pontuação aconteceu em 1987-88, quando ele teve... 37,1 por jogo.

        Outros fatos impressionantes: dentre as 10 maiores pontuações da história, 6 são de Chamberlain; em 66 partidas diferentes ao longo de 70 anos de NBA um jogador marcou 60 ou mais pontos -- Chamberlain é responsável por 32 desses jogos; Wilt marcou pelo menos 50 pontos em 122 partidas, um recorde: do segundo (Jordan, 39) ao sétimo da lista, a soma é de… 122 jogos; em 126 partidas SEGUIDAS Wilt marcou pelo menos 20 pontos -- o segundo melhor desempenho é dele mesmo (92 jogos); por fim, Wilt é o único jogador a marcar mais de 4 mil pontos em uma única temporada.


        Ele foi cestinha da temporada 7 campeonatos seguidos, um recorde que só seria igualado por… Michael Jordan.
                “A razão pela qual as pessoas não acreditam nos números de Wilt é que eles foram tão grandes, tão inimagináveis, que quase não parecem ser verdade. Então tentam diminuir a era em que ele jogou e os adversários que enfrentou. As pessoas não conseguem compreender aquilo, coisas que ele fazia quase todo jogo e toda noite. O que resta é tentar encontrar um jeito de desprezar ou abandonar esses feitos, tentando fazê-los parecer irreais”.

                (Bill Russell, jogador com mais títulos na história da NBA)

        No início de 1965, Chamberlain se mudou para o Philadelphia 76ers. Lá, ele continuaria pontuando muito bem (em 4 temporadas na equipe ficou sempre entre os 3 maiores pontuadores), mas passou a funcionar como um organizador da equipe, dando assistências com frequência e volume incríveis.

        Em 1968, na vitória diante dos Pistons, Wilt marcou 22 pontos, apanhou 25 rebotes e deu 21 assistências. Duas marcas intransponíveis surgiam: é o maior número de assistências já alcançado por um pivô, e a única vez que um mesmo jogador atingiu duas dezenas nos três fundamentos. Ele marcaria 31 triplos-duplos naquela temporada, o que é mais do que Jordan -- ala-armador -- conseguiria… ao longo da carreira.

        Naquele campeonato, Wilt totalizou 702 assistências nas 82 partidas que realizou. A absurda média de 8,6 passes para cesta por jogo é a maior já obtida por um atleta das posições 4 (ala-pivô) ou 5 (pivô), e supera melhor performance de Michael Jordan no quesito: 8,0 por partida.

        Outro fator que Wilt desenvolveu e aprimorou em seu tempo nos 76ers foi o aproveitamento de arremessos. Se no tempo dos Warriors sua massiva quantidade de pontos devia-se em parte à grande quantidade de bolas que ele arremessava, nesta nova fase ele passou a errar cada vez menos: ele acertou um total de 35 cestas de forma consecutiva (4 partidas), incluindo um jogo com 18 arremessos e 100% de acerto.

    Seu aproveitamento na temporada 66-67 foi de 68.3%, um recorde para a época e que seria superado somente por ele mesmo -- Jordan nunca chegou a ter 54% de aproveitamento em uma temporada.

        Em 1968, Chamberlain foi negociado com os Lakers. A equipe de Los Angeles enviou três jogadores para a Philadelphia em troca do pivô. Lá ele se tornaria o primeiro atleta da NBA a receber mais de 1 milhão de dólares de salário.

        Wilt chegou como estrela principal num time que já tinha dois jogadores geniais: o ala-armador Jerry West e o ala Elgin Baylor. Dois craques, espetaculares pontuadores, mas que não conseguiam de forma alguma o título. Se formava ali o primeiro “Superteam” da história, termo tão comentado na NBA atual.

O primeiro "Big Three" da história: Baylor, Wilt e West
        Como Baylor e West concentravam a pontuação dos Lakers, Wilt passaria a viver sua terceira versão como jogador: ele seria o maior defensor do planeta. Isso não significa que ele não conseguia mais pontuar: diante da desconfiança, Wilt marcou 60 pontos e depois 66 num intervalo de duas semanas -- ele se tornava, assim, o jogador mais velho a marcar mais de 60 em um jogo (e essa marca permanece até hoje). No Jogo 6 das Finais de 1970, Wilt marcou 45 pontos -- ou máximo já atingido em uma partida de “vida ou morte”.

        Sua grande contribuição, porém, se daria nos “tocos”, ou bloqueio de arremessos. Por exemplo, no Jogo de Natal de 1968, transmitido nacionalmente pela TV, Wilt deu nada menos do que VINTE E TRÊS tocos nos jogadores do Phoenix Suns. Para se ter uma ideia, desde então o máximo registrado em um jogo foi de 17. Paralelamente, Wilt mantinha sua eficiência nos arremessos, alcançando o recorde percentual em 1973 (72,7% de acerto, feito ainda não superado).

        Como consequência, os Lakers estabeleceram uma marca que não tem previsão de ser batida: foram 33 vitórias seguidas, recorde não apenas no basquete, mas em todos os esportes americanos. O pilar desta incrível sequência? Pat Riley, um dos jogadores daquele time e futuro técnico da franquia, afirma: “Acho que não há nenhuma dúvida de que no ano em que fomos campeões a grande diferença foi Wilt”.     

        Uma característica do jogador Wilt Chamberlain merece destaque e permaneceu intacta mesmo em suas mudanças de time: os rebotes.

        As maiores marcas relacionadas aos ressaltos pertencem a Wilt: foi ele quem mais apanhou rebotes na história (23.924), em uma mesma temporada (2.149), em uma série de Playoffs (220), em uma partida (55) ou em um jogo eliminatório (41). É também dele o maior número de temporadas como o líder na categoria (11) e as maiores médias de rebotes por jogo ao longo da carreira (22,9) e em Finais (24,6).

        Tamanho domínio, embora inquestionável, causou um imbróglio para a famosa revista Sports Illustrated: em 1996, o fascículo realizou uma pesquisa com jogadores, ex-jogadores, jornalistas especializados, dirigentes e técnicos, perguntando quem seria o melhor “rebounder” de todos os tempos. A resposta foi Wilt Chamberlain. A capa trazia Dennis Rodman.

           Outro aspecto que mostra não apenas sua regularidade, mas também o comprometimento com a equipe e a lealdade aos companheiros de profissão: Wilt Chamberlain terminou sua carreira profissional sem jamais ter excedido o limite de faltas. Em 1,205 partidas, ele nunca foi “expulso”, mesmo sendo recordista de minutos em quadra (dos 48 minutos regulamentares, ele atuava em uma média de 45,8). Novamente, vale a comparação: Michael Jordan foi obrigado a deixar a quadra 11 vezes na carreira.
Wilt Chamberlain marcou 4,029 pontos na temporada 61-62

            Afinal: Chamberlain não tinha nenhum ponto fraco, nenhum aspecto negativo em seu jogo? Tinha, sim: Wilt era ruim nos lances-livres. Seu índice de aproveitamento na linha era de pouco mais de 50%. Mas mesmo em seu “calcanhar de Aquiles”, ele era capaz de se superar e surpreender: o recorde de lances-livres convertidos em uma temporada é de Jerry West (840), é o segundo da lista é Wilt, com 835. O terceiro é um certo Michael Jordan, com 833. Além disso, Wilt tem o recorde de acertos em uma única partida: foram 28 (em 32 tentativas!).
            “O problema de Wilt Chamberlain é que ele estabeleceu limites tão altos que era difícil conseguir se manter em seus padrões. Havia noites em que ele marcava 40 pontos e pegava 30 rebotes e nós sequer estanhávamos o olho. Só dávamos um tapinha nas suas costas e dizíamos: 'Bom jogo, garotão’”

                (Billy Cunningham, atleta presente no Hall da Fama do Basquete e um dos poucos a ser campeão da NBA como jogador e treinador).
Chamberlain é o único atleta a marcar 100 pontos em um jogo da NBA


        A importância de Wilt para a história do basquete não foi apenas simbólica: como afirma Phil Jackson, técnico campeão 11 vezes (6 com os Bulls de Jordan e 5 com o Lakers de Kobe Bryant), "[Chamberlain] foi o cara cujo impacto causou mudanças nas regras do jogo. Ele mudou o Basquete por dentro".      

        Dentre as mudanças causadas por conta do domínio de Wilt, alterações nas regras de reposição de bola -- passou a ser proibido lançá-la por detrás da tabela --, interferência na cesta -- estabelecendo limites de distância e trajetória da bola com relação ao aro -- e nos lances-livres -- se tornou obrigatório que o arremessador não “andasse” ou apanhasse o próprio rebote.        

        Mas a maior das mudanças foi no tamanho do garrafão: até a temporada 1964, a distância lateral era de 12 pés (ou 3,60m). Mesmo com a regra dos 3 segundos -- um jogador de ataque não pode permanecer por mais do que três segundos na área --, Wilt conseguia chegar à cesta com extrema facilidade.

        Para 1965, o tamanho do garrafão aumentaria: passou para 16 pés (ou 4,80m). A expectativa era diminuir o ritmo de Wilt. Em vão: ele foi cestinha nos dois anos seguintes, conseguindo 34,7 -- 12ª melhor marca da história, sendo que 5 das 6 primeiras são de Wilt -- e 33,5 pontos de média, respectivamente: raros atletas conseguiram tais médias nas últimas duas décadas. Vale lembrar que não havia linha de 3...

        Além das mudanças práticas e diretas, Wilt também influenciou o jogo de diversas formas: a chamada “cravada” (o termo “Slam Dunk”, inclusive, foi cunhado a partir dele), o “fadeaway” ou o “finger roll”, arremessos muito eficientes e comuns hoje em dia, foram criados ou desenvolvidos por Wilt, ora por necessidade (dores nos joelhos), ora por decisão (era criticado por se beneficiar de sua altura).

        É ele também quem introduz a “testeira” no esporte (LeBron James a usou por anos), quem eleva a fisioterapia esportiva a outro patamar e quem muda a perspectiva do jogador de basquete como atleta profissional, não apenas em termos de remuneração mas também de posição social.

        Em 2011, numa entrevista via rádio, Scottie Pippen falava das comparações entre LeBron e Jordan, tecendo enormes elogios a ambos e afirmando que o atleta do Cavaliers “poderia superar” Jordan como o maior de todos os tempos. Dentre as muitas reações a tais comentários, uma se destacou: Kareem Abdul-Jabbar, o jogador que mais marcou pontos na história da NBA, escreveu uma carta aberta para Pippen intitulada “Como eles esquecem rápido”.
        
       No texto, ele deu tremendo destaque a Wilt Chamberlain. Seus comentários são definitivos.
        “Obviamente você nunca viu Wilt Chamberlain jogar; sem dúvidas ele foi o maior pontuador que o basquete jamais conheceu. Por acaso Michael Jordan marcou 100 pontos em um jogo? Quantas vezes ele marcou mais de 60 pontos numa partida? MJ tem que ser avaliado na perspectiva correta: sua incrível habilidade atlética, seu carisma e liderança nas quadras ajudaram a tornar o basquete um esporte popular ao redor do mundo – não há como negar isso. Mas em se tratando de grandeza ele fica atrás de Wilt.
        (...)
        O fato de agora haver jogadores habilidosos de toda parte do mundo não significa uma aumento na quantidade de talento. Para ser bem claro: o número de jogadores que poderiam ter enfrentado Wilt Chamberlain em seu auge não mudou”.

    A bem da verdade, talvez devêssemos nos referir a Pelé como "o Chamberlain do futebol".

    Marcel Pilatti